Duciran Farena
Procurador da República
dfarena@prpb.mpf.gov.br
Nos últimos dias, tem sido criada artificialmente por meio da imprensa uma polêmica sobre a retirada das barracas do Jacaré, medida atribuída a uma “recomendação” do Ministério Público Federal ao órgão gestor do patrimônio federal – a Secretaria do Patrimônio da União – SPU.
Digo, artificialmente, porque tal polêmica foi orquestrada especificamente para desinformar – chega-se a dizer que o Ministério Público quer acabar com o pôr do sol no Jacaré.
Não está no poder de nenhuma instituição humana acabar com o pôr do sol. Ele acabará natural e inexoravelmente, daqui a cinco bilhões de anos, mas provavelmente isto não fará diferença alguma para a raça humana nesse futuro remoto.
O que o Ministério Público, imbuído por dever legal e constitucional, quer acabar é com a apropriação indevida e abusiva por parte de poucos – cinco ou seis particulares - de patrimônio público federal, de bens do uso comum do povo, bens que, como praias, pertencem a todos nós.
E não é só no Jacaré – é em todo o litoral da Paraíba, como demonstram inúmeros outros casos – praias do Bessa, Lucena, Camboinha, Formosa – de onde recentemente foram retirados barraqueiros. O que não se compreende é porque este caso teria sido “selecionado” e jogado à imprensa – a não ser que o interesse aqui não seja cumprir a lei, mas mobilizar enganosamente a sociedade em prol de uma causa ilegal e imoral – o interesse de meia dúzia de privilegiados, enriquecidos pela privatização e exploração exclusiva de algo que pertence ao povo.
Quem não se indignaria, se, em um belo dia de sol, ao se dirigir à sua praia favorita para um momento de lazer, encontrasse o local cercado, cujo único acesso se desse por meio de uma “estrutura” confortável e luxuosa, mas com entrada condicionada ao pagamento de ingresso ou “consumação”? Pois a situação não é distinta no Jacaré, onde quase todo o espaço disponível para contemplação do pôr do sol foi privatizado pelas barracas.
No Caribe e em alguns países europeus, onde as praias não são bens públicos, encontram-se lugares assim. Para ir à melhor praia, você tem que pagar. Se você não tem dinheiro, dirija-se à praia pública – em geral um espaço congestionado e não tão bem cuidado. E não falta turista, as praias particulares são reluzentes de tão bem cuidadas. Mas este não é o modelo da lei brasileira. Se o negócio é turismo, nossos políticos, em especial os que se engajaram prontamente na campanha “salve o pôr do sol” poderiam bem propor esta alteração legislativa. Os turistas e negociantes, livres da turba de má aparência e maus modos, e ainda por cima desprovida de pecúnia, agradeceriam.
Tem dúvida? Experimente entrar sem pagar numa dessas barracas do Jacaré que pedem seu apoio para a campanha deles. Entre, sente-se em uma mesa com vista para o pôr do sol, abra seu isopor e comece a consumir as cervejinhas que você trouxe de casa. Experimente entrar sem pagar especialmente em um dia dos inúmeros shows que promovem, provocando degradação, ruído e sujeira (conscientemente varrida depois para o rio) perturbando um ambiente que deveria ser de contemplação. No entanto, você tem esse direito. O espaço é público. O invasor é ele.
Você votaria a favor em um plebiscito destinado a tornar as praias propriedades privadas, ainda que isso fosse considerado proveitoso aos negócios e ao turismo?
O que ninguém explica para a população é onde está o direito daqueles que reclamam por permanecer indefinidamente num local ilegalmente ocupado, privando a população do acesso, obstruindo a vista do pôr do sol, e sem pagar nada. Quando muitos moradores do litoral, que construíram suas vivendas licitamente em lugar permitido, são obrigados a pagar a taxa de ocupação da SPU. Quando muitos, que querem abrir restaurantes e hotéis em lugares onde a construção é permitida, têm que arcar com os custos do licenciamento ambiental e se comprometer com uma série de medidas de prevenção de danos ambientais.
Com base em quê a lei não se aplicaria aquele que invadiu bem de uso comum do povo, terra considerada da União desde a época do império? Que construiu ali sem pedir autorização nem alvará, não fez licenciamento ambiental, não concorreu em igualdade de oportunidades com outros interessados no mesmo ponto, não paga nada e explora esta posição privilegiada, faturando milhões, ainda excluindo os não pagantes e sem prestar contas a ninguém?
Em outra ocasião, já disse que na Paraíba não existe a “ocupação inocente”. Todo aquele que ocupa um bem público, ilegal e graciosamente, seja uma praça ou uma praia, contou em algum momento com a conivência de uma autoridade ou a proteção de um político. Na praia mais distante, uma simples caiçara será derrubada se alguém não fizer vistas grossas. Nisso consiste o “pioneirismo” dos primeiros invasores, aqueles que se consolidam e querem permanecer às custas dos demais, privados da mesma possibilidade.
A prevalecer este tipo de situação, valha aqui o ditado – locupletemo-nos todos. Que seja permitido, por exemplo, ao povo do Renascer, este sim, composto de gente necessitada, ocupar o trecho da pracinha do Jacaré (o único espaço que resta para ver o por do sol) e ali também implantarem suas plataformas e estruturas destinadas ao usufruto de seus clientes. Que toda a área disponível seja ocupada por novas barracas. Talvez assim vejamos um pouco de povão usufruindo de algo mais do que assistir em pé ao famoso espetáculo natural.
De fato, não faltam empreendedores tímidos ou ousados, populares ou refinados, dispostos a investir em uma posição privilegiada. Ocorre apenas que à primeira tábua que estes novos e dinâmicos empreendedores colocassem no rio, os atuais barraqueiros, ciosos de seu monopólio exclusivo sobre o pôr do sol, seriam os primeiros a protestar e exigir a ação governamental. Desde que recaia sobre o lombo do outro.
A única verdade é que o Jacaré e o pôr do sol não precisam dessas barracas. Se forem forçados a recuar, os atuais empreendedores farão como o dono da “La Espanhola ” – alugarão ou adquirirão casas em terra firme para seus empreendimentos e toda a área de frente para o rio será liberada para que cumpra sua função contemplativa, prevista no decreto de criação do Parque do Jacaré.
Não que não possa haver píeres ou ancoradouros – cidades litorâneas no Brasil possuem diversas estruturas desse tipo – nesse caso, devidamente licenciadas pelos órgãos ambientais, com acesso público, e, quando possuem espaços para serviços, licitados (onde se faculta a qualquer interessado o mesmo direito de explorar o ponto privilegiado). O vencedor da licitação pagará a taxa de ocupação, do mesmo modo que paga hoje qualquer um que ocupe legalmente um terreno de marinha.
Enquanto isso não ocorre, será inútil a qualquer um buscar perante o Ministério Público referendo – disfarçado em termo de ajustamento de conduta – para situações ilegais. Aos políticos, resta-lhes propor a alteração legislativa que tornará as praias propriedades privadas, eliminando, de quebra, a legislação ambiental e o princípio constitucional da igualdade.
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